quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Síndrome de Fim de Ano

Com a correria das festas, aumentam os casos de stress, que leva a doenças como hipertensão e infarto


O tradicional período de alegria também pode se tornar um transtorno: o taxista Magela sofre no trânsito ...


CARLA GULLO

Dezembro. O trânsito dobra de volume, a população parece triplicar. As lojas ficam cheias, os corredores dos shoppings e as calçadas das ruas são disputados metro a metro. São tantos detalhes para pensar: a melhor árvore, o enfeite mais bonito, as roupas, o presente do amigo secreto, dos filhos, do marido, da mulher... Tudo isso tem de caber no orçamento. Do contrário, o ano vai começar negativo. Parece incrível que uma simples comemoração de Natal possa se transformar em algo tão complicado. E o pior de tudo é que se entra na roda-viva sem perceber que isso muitas vezes traz complicações para a saúde. Afinal, tantos compromissos e obrigações resultam num verdadeiro stress que pode desencadear uma série de sintomas no organismo. "No final das festas, ou mesmo durante o corre-corre que as antecede, é comum ouvir reclamações de dores musculares, de cabeça, taquicardia, pressão alta. Sem falar de angústia e depressões mais sérias", diz a psicóloga gaúcha Ana Maria Rossi, especialista em tratamentos de stress.



A advogada paulista Patrizia Calabria, 27 anos, corre o ano todo. Mas nesta época de Natal o volume de trabalho dobra. A pressão dos clientes aumenta e todos querem resolver os problemas em menos de um mês. "Mesmo sem querer, acabo sendo esmagada pelo rolo compressor", afirma ela. Como consequência, a advogada fica muito irritada e sente dores por todo o corpo. "Chego do trabalho e tenho vontade de me atirar na cama e só sair de lá depois que o Natal passar." Da mesma forma, o arquiteto gaúcho Franco Sessa, 48 anos, trabalha intensamente durante meses. Com um escritório particular, cuida não só de projetos mas de construções e reformas de casa. Em dezembro, no entanto, o trabalho fica um pouco mais complicado. "Todos querem a casa pronta para as festas. Só que os marceneiros, pedreiros e eletricistas estão muito ocupados e quase não pegam serviço. Fico espremido feito sanduíche", conta ele. Na tentativa de agradar a todos, Sessa se esquece dele mesmo. Com muito poder de negociação, na maioria das vezes consegue dar conta dos pedidos, mas em troca ganha uma terrível dor nas costas que em geral o acompanha por todo o verão.



A família Aranovich se desentende na hora de viajar: Rosa e as filhas querem a praia, enquanto Arnaldo prefere a neve



A tensão do final do ano pode funcionar como a gota d'água de um processo de fadiga que se acumulou dia a dia, mês a mês. E o resultado, em geral, são sérias consequências para o corpo. É fácil entender por quê. O stress é a resposta de um processo pré-histórico de defesa do organismo que persiste até hoje. O homem moderno continua reagindo ao meio ambiente como seus ancestrais. Na época das cavernas, era necessário lutar para sobreviver. Só que muitas vezes, a luta seria em vão e era preciso fugir para se salvar. Para saber exatamente qual a melhor escolha, o cérebro desenvolveu um mecanismo que em apenas sete segundos dá o comando para o resto do corpo reagir ou fugir. Nesses segundos, há todo um aparato que prepara o corpo para o estado de alerta. A pressão arterial aumenta, a respiração acelera, pés e mãos se tornam frios. Desaparece a sensação de fome, pois o organismo precisa de toda a energia para lutar. Engenhoso, sem dúvida. Mas esse maquinário natural descarrega uma série de substâncias, entre elas um hormônio chamado adrenalina, que, em excesso, pode provocar doenças. Para o homem das cavernas era mais fácil lidar com essa descarga de hormônios. Armado de todo um aparato físico, ele corria ou lutava. "Com isso, era difícil acumular essas substâncias no corpo", atesta o clínico Luís Carlos Silveira, da Clínica Kür Hotel, na serra gaúcha. Mas para o homem moderno não é possível a cada momento responder a esse mecanismo natural. Nem sempre dá para lutar e muito menos fugir. O trânsito pára, o dinheiro não dá, as lojas estão cheias. Mesmo assim, as regras sociais exigem que se aguente calado. Conclusão: o corpo mantém-se em estado de alerta e acumula adrenalina.

Mesmo aqueles profissionais que não se cansaram tanto durante o ano, mas trabalham mais intensamente entre novembro e dezembro sentem de perto as mazelas do stress. O estudante Luciano Santos, 29 anos, está desempregado e pegou um trabalho temporário numa loja de discos em São Paulo. Está espantado com o ritmo, não dos CDs, mas dos clientes. "Cheguei a vender 170 CDs em apenas dois dias. Dá um dinheiro bom, mas minhas pernas e minhas costas ficam acabadas. Descanso agora, só em janeiro", diz. As vendedoras Rosângela Cunha, 36 anos, e Ângela Bernardes, 17, também reclamam de dores nas pernas e no corpo. Num turno acelerado de 12 horas diárias, sem finais de semana, as garotas sonham com a primeira semana de janeiro, data em que vão folgar. "O corpo reclama, mas acho que vendedor precisa de adrenalina para sobreviver", afirma Ângela.


O aposentado Robles: descanso como Papai Noel


Não só os vendedores, mas qualquer ser humano necessita de adrenalina para viver. Do contrário, o mundo seria uma apatia total. Por isso que, na dose certa, o stress é positivo. O perigo, na verdade, é quando os hormônios se acumulam. É nessa hora que a fadiga começa a mostrar suas garras. Os sintomas iniciais, que é o primeiro estágio do stress, em geral são insônia, dor de cabeça, enxaqueca, bruxismo (ranger os dentes durante a noite), pressão alta, dores musculares, irritabilidade. A segunda fase é a mais perigosa. É o momento em que o corpo reage aos sintomas mascarando-os. Isso dura anos e os próprios especialistas podem não se dar conta do perigo. De uma hora para outra vem o terceiro momento, o avançado. É quando aparecem os distúrbios mais importantes como síndrome do pânico, depressão, úlcera, hipertensão e problemas cardíacos - o infarto, por exemplo. E, por incrível que pareça, grande parte dessas doenças se manifesta no fim do ano ou quando há eventos importantes e tensos, como a Copa do Mundo ou o anúncio de um novo plano econômico. O cardiologista Charles Mady, do Instituto do Coração de São Paulo, Incor, afirma que nessas horas há um aumento significativo de pacientes no hospital. "É o resultado daquilo que se chama stress de ocasião. O nível de substâncias químicas no corpo, entre elas a adrenalina, sobe ainda mais e sobrecarrega o coração", explica.

A própria palavra stress vem carregada de tensão. Derivada do latim, foi popularmente usada no século XVII para representar "adversidade" ou "aflição". Mais tarde, passou a ser um conceito da física que significava "fio prestes a arrebentar". Em 1936 o endocrinologista austríaco Hans Selye tomou emprestado esta palavra e a definiu como "um conjunto de reações que o organismo desenvolve ao ser submetido a uma situação que exige esforço para adaptação". Este conceito é válido até hoje e se popularizou de uma maneira impressionante. Não sem razão. Afinal, embora não se tenham números, sabe-se que o stress atinge uma grande quantidade de pessoas. Alguns profissionais são os alvos principais, como médicos, bancários, publicitários, jornalistas, motoristas, secretárias, operadores do pregão, controladores de vôo, garçons. São pessoas com fortes responsabilidades, mas sem grande poder de decisão, o que provoca um maior represamento de adrenalina. E, também no fim do ano, o stress dessas vítimas dá sinal de vida. O taxista Geraldo Magela, 34 anos, luta no trânsito de São Paulo durante 12 horas por dia. A briga é dura. A capital paulista tem uma frota de mais de 4,5 milhões de carros e sabe-se que no final do ano este número cresce muito com visitantes que vão fazer compras. "Nesta época, trabalho das sete da manhã à meia-noite. Fico com dores nas pernas por causa da embreagem, me irrito à toa, mas não posso parar. Sinto que envelheço alguns anos em dezembro", conta. A bancária Maria Eugênia de Souza, 37 anos, também padece mais nesta época do ano. No banco onde trabalha, o serviço dobra. "Todo mundo acha que terminamos às 16h30. É nesse hora que começa o pior", conta. Além de dar duro no trabalho, Maria Eugênia, casada e mãe de dois filhos, está preparando toda a festa para o fim de ano. "É uma correria sem fim. Demoro meia hora para estacionar o carro no shopping e as lojas estão cheias. Gostaria de viajar durante o Natal e reveillon para não ter de me preocupar com ceias e presentes", desabafa.

Não só ela quer fugir das festas. Muita gente procura descansar durante as pequenas férias coletivas que ocorrem principalmente próximo ao reveillon. Mas, de novo, o stress volta a atacar. O trânsito infernal das estradas, o corre-corre para deixar tudo pronto para a viagem e a decisão para onde ir chegam a cansar ainda mais. Esse último item muitas vezes pode provocar uma verdadeira crise na família que leva a uma fadiga maior do que a correria. É o caso do advogado gaúcho Eduardo Aranovich, 49 anos, e da mulher, Rosa, 48. Ele sonha em passar o ano-novo em Nova York. Mas Rosa e as filhas Alexandra, 24 anos, Natália, 21 e Tatiana, 16, são irredutíveis: querem ir onde tenha sol. "Quero fugir para bem longe do stress de fim de ano, mas acabo provocando uma guerra em família", desabafa Aranovich. "Elas são maioria e acabam vencendo. Mas no ano que vem, vou de qualquer jeito", afirma.

O stress é implacável. Pode atacar quem vai e também quem fica na própria cidade. Afinal, nem todo mundo gosta de reuniões em família ou mesmo fogos e festas. Segundo a psicóloga Marilda Novaes Lipp, do Centro de Controle de Stress de Campinas, a obrigação de estar feliz durante o fim de ano, o encontro nem sempre agradável entre as pessoas estressa muita gente e pode provocar depressões sérias. "Muita gente tende a fazer um balanço do passado e se recrimina por não ter cumprido algumas promessas feitas no início do ano", diz Marilda. "É uma época difícil principalmente para quem é sozinho ou perdeu o companheiro ou parente próximo. Por isso, aumentam muito os casos de suicídio durante este período", completa.

Para algumas pessoas, as festas são particularmente angustiantes e até mesmo perigosas. É o caso de ex-drogados e ex-alcoólatras, que, depois de algum tempo de abstinência, podem cair na tentação de voltar a beber ou se drogar por influência do clima natalino. "A pressão social é grande, principalmente no que diz respeito à bebida", afirma o toxicologista e psicoterapeuta Ricardo Feix, do Centro de Dependentes Químicos de Porto Alegre. "Ninguém entende que chamar um ex-alcoólatra para beber pode significar muito mais do que um simples copo. Ele volta a ser alcoólatra." O artista plástico Claúdio Franqui, 38 anos, atesta as palavras de Feix. Abstêmio de drogas e bebidas alcoólicas há quase dois anos, ele vive desde já a expectativa das festas. "Penso em passar sozinho com minha mulher. O Natal e o reveillon são muito estressantes para mim. Chego a ter medo desses encontros", diz. "Todo mundo oferece bebida e é preciso muita força de vontade para resistir. Prefiro ficar longe da badalação e preservar minha vida."

Por incrível que pareça, em meio ao corre-corre e taças de champanhe, uma figura parece bastante descansada e feliz: o Papai Noel. O aposentado Antônio Robles, 67 anos, há quatro anos tem um emprego temporário no Shopping Iguatemi, em São Paulo, onde faz o papel do bom velhinho. Feliz entre balas e sorrisos de crianças, ele diz que é a época em que aproveita para sentar e descansar. Depois que se aposentou, ele e o filho abriram uma pequena empresa de manutenção de edifícios. Um serviço sem dúvida desgastante. "Trabalho mais de oito horas por dia fazendo pintura e marcenaria. O Natal é minhas férias", conta. Taí uma saída. Para quem sofre com as obrigações de fim de ano e com o caótico trânsito das grandes cidades do País, imaginar a tranquilidade da vida no Pólo Norte pode ser uma alternativa para congelar tensões e ansiedades que se multiplicam nessa época.


FONTE: http://www.terra.com.br/istoe/comport/141803.htm

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